segunda-feira, 1 de junho de 2020

Constante 0013 | Escutou uma música

A música acabou e ele continuou sentado, de barriga pra cima, com o pescoço desconfortável, segurando uma tigela que há dois minutos tinha três bolas de sorvete. De abacaxi ao vinho. Economizou no arroz para comprar o pote.

A música acabou. Era um disco compacto. Duas faixas de cada lado. Mas ele não gostava do lado A.

Ficou estirado no sofá.

Os seus amigos viriam a qualquer momento. E ele ali no sofá.

Adormeceu.

Acordou com as batidas na porta.

Deixou que batessem.

Ô, não vai abrir essa porra, não?, disse o amigo José, pendurado na janela da sala. Sorria.

Os outros do lado de fora protestavam.

Ele continuou no sofá, meio assonado.

O amigo José entrou pela janela. Caiu.

Pôs-se de pé e limpou a jaqueta de couro. Passou pelo amigo e deu um tapinha em sua cabeça.

O amigo José foi até a porta, abriu-a e os outros amigos entraram.

1, 2, 3, 4...

Com o pote de sorvete ainda na mão, perdeu-se na conta.

Havia gente por todo seu apartamento. Ele morava no térreo.

Olhou para fora e já estava amanhecendo. Devia ser umas 4 ou 5 da manhã.

Pô, você não falou que ia vim 10 horas, José?

Ah, a gente perdeu a hora.

Alguém plugou o celular numa caixinha de som e começou uma música eletrônica.

Pô isso aí, não. Uma música decente, por favor!

Relaxa, cara...

Pô, José, você falou que ia vim umas 4 pessoas!

Eu quis dizer quarenta, disse o amigo José.

Uma mulher sentou no seu colo, de frente pra ele. Pegou o pote e jogou-o para trás. Sorvete derretido caiu sobre a cabeça de um. Esse um deu uma risada e continuou dançando.

A mulher abriu o zíper e colocou a mão dentro de sua calça.

Ele se surpreendeu no início, mas não protestou.

Alguém disse algo como, Olha só, o cara tem vitrola. E colocaram o compacto pra tocar.

O lado que ele não gostava começou.

De novo, ele não reclamou. Apenas relaxou.

Uma buzina soou. E mais uma vez.

Homens trazendo caixas e caixas de cerveja. Um deles entregou uma latinha a ele, aberta e gelada.

A música ficava cada vez mais alta.

Olhou para o lado e viu outros casais na mesma situação dele.

A mulher no seu colo parou.

Ficou sentada do seu lado.

Começou a filosofar, sobre a vida e a brevidade de tudo.

Ele achou interessante. Ela pegou duas cervejas pra eles.

Um cara chegou perto. Ele recusou educadamente.

A mulher não quis dizer o nome.

Misteriosa, pensou. Legal.

Perguntou qual era o seu telefone. Ela disse que não tinha celular.

Hummm, ele murmurou.

Voltaram a filosofar.

O amigo José dançava e dançava. Bebia e bebia.

Ele também, bebia.

Falavam agora de conspirações. Ela acreditava nos verdinhos, ele era indiferente.

Ele se cansou dela depois que começaram a falar de espiritismo. Mas depois disso, o apocalipse equilibrou as coisas.

Eram seis.

Tinha que ir trabalhar.

Ela disse, dá aí o teu telefone. Qual é o número do teu trabalho?

Ele deu.

Ela disse, o... Qual o seu nome...? Ah, tá... O Antônio não vai trabalhar hoje... Tá doente. Hã? Ah, então vai pra puta que pariu!

Depois de alguns segundos desligou.

Você tá demitido... Acho que ouviram a música.

Tudo bem, disse ele. Me dá um beijo.

Ela deu.

Mais uma cerveja apareceu na mão dele.

Bebeu.

Ela tragou um cigarro. Soprou a fumaça na cara dele. Ele não se importou.

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