quinta-feira, 12 de março de 2020

Constante 0009 | De tubo, 29 polegadas

Um

Ele tinha marcado de se encontrar com a mulher na porta do prédio do seu apartamento. Não sabia como ela era. Tinha perguntado a um amigo se ele não conhecia alguém que estava precisando de uma televisão. Ele estava vendendo a sua.
O amigo então lembrou-se de uma amiga que estava abrindo uma loja e precisava de uma.
Ele tomou o seu café. Olhou pela janela. Havia pouco movimento na rua. Era umas seis e meia.
Não costumava acordar cedo. Mas esse era o único horário que ela poderia ir ver a tal televisão.
Estava com sono. Havia dormido pouco. Acordou no meio da noite com uma ambulância passando a toda na rua e não conseguiu mais pegar no sono.
Tomou mais uma caneca de café. Talvez fizesse efeito, pensou. Pegou um pedaço de pão de forma quase duro, seco e passou margarina. Queria um café dos deuses. Com bis, cereal de chocolate, presunto e queijo e tudo mais, mas não podia se dar ao  luxo. Era por isso que estava vendendo a televisão. Precisava de dinheiro. Pagar umas dívidas, sair da forca.
E além do mais, não assistia TV mesmo.
Levantou-se da mesa, que ficava na sala, ao lado da janela e foi até o aparelho. Ligou-o. Para ver se ainda estava funcionando. Estava. Apareceu uma rodovia. A voz de uma repórter dizia algo sobre os números de mortes no período, que tinham aumentado.
Desligou. Pronto. Não ficaria com cara de bobo caso a TV não funcionasse.
Voltou à janela. Debruçou-se. Viu uma mulher na sarjeta. Um homem passou por ela. Ela pediu dinheiro. Ele fingiu que não era com ele. Parecia bêbada ou drogada. No mínimo bêbada.
Atravessando a rua, a uma outra mulher chamou sua atenção. Tinha um belo par de peitos, e uma bela bunda também. Estava um pouco acima do peso, mas não era ruim.
Ela desapareceu debaixo do toldo do portão do prédio.
O interfone tocou.
Era ela.


Dois

Helen estava emburrada. Olhava para fora, na janela do ônibus. Mais um dia.
Mais um dia perdido por um salário e meio que não dava pra mais nada.
Os olhares dos homens para ela quando ela entrava no ônibus a aborrecida. O barulho do ônibus. A senhorinha da esquina onde ela trabalhava havia lhe dito que ela precisava sorrir mais. Isso a deixou mais puta ainda. Nada aliviava as merdas do dia a dia. Não tinha ninguém em sua casa velha quando chegava.
Não tinha mais amigos. E isso se deve a algo que ela fez no passado.
Sua culpa. Que ela pagasse o que deveria pagar.
Desceu do ônibus e passou pela senhorinha filha da puta. Esse seria seu último dia trabalhando ali. Logo logo estaria com a sua loja, como sempre quis. Faria isso nem que fosse dar errado. E não daria. Ela não iria deixar que isso acontecesse.


Três

Ela apertou o interfone.
- Oi, é... Sou amiga do Rafael, ele falou que você tá vendendo uma TV...
- Sim, sim. Pode subir.
Ele ficou um pouquinho nervoso. Aquela mulher estaria em seu apartamento em alguns segundos. E ele ali, com uma camisa velha, e moletom.
Deu alguns socos no saco de pancada. Foda-se, pensou.
Ele abriu a porta. Ela o cumprimentou. Viu que tinha um piercing no nariz.
- Você é o Augusto, né?
- Isso, isso. Disse, apertando a mão quente dela. Pode entrar.
- Brigada.
Ela deu um risinho.
- Que legal, você luta.
Ele não entendeu se foi uma pergunta.
- Naah, só brinco de vez em quando.
Ela encostou a mão na lona. Deu um soquinho.
Ele viu a bunda de perto. Era linda. Ela usava uma calça preta justa.
- Eu também lutava. Mas sério.
- Ah...
Era só o que conseguia pensar.
Ele estava hipnotizado.
Ela se virou. Ele desviou o olhar. Ela sorriu. Em um dos caninos estava outro piercing.
- Ah, é... Você quer alguma coisa, café, água...?
- Um cafezinho, pode ser.
- Ok.
Augusto deu alguns passos e já estava na cozinha. Pegou uma caneca do armário.
- Você é a...
- Oi?
- Seu nome?
- Ah, é Helen. Desculpa.
- Sem problema. Helen é um nome bonito.
- Sério? Essa é a sua jogada?
Ele ficou sem graça. Esqueceu onde ficava a cafeteira por alguns segundos.
- Não, eu só...
- Relaxa.
Ela sorriu e andou até a TV.
Ele colocou café na caneca.
- Açúcar?
- A-hã. Uma colher só.
Ele ouviu a TV ligando.
Levou a caneca até ela.
- Aqui.
- Brigada.
Ela tomou um gole.
- Então essa é a tal?
- Essa mesmo.
Ficaram olhando.
Era uma TV de tubo, de 29 polegadas.
- Quanto você tá pedindo?
- Quatrocentos.
- Mesmo? Tudo isso?
Ele olhou para ela.
- Quanto você acha que vale?
Ele sentou-se no sofá. Ela cruzou os braços, analisando a TV.
Helen fez biquinho antes de falar.
- Ah, sei lá, uns duzentos.
Ela tomou mais um gole de café. Olhou para ele, que disse:
- Só duzentos?
- Ah, é uma velharia. Deve ter uns vinte anos.
- É, mais ou menos.
Ela se sentou no sofá. Olhou para Augusto.
- E então, qual é a sua contraproposta?


Quatro

Augusto estava mal. Tossia a cada cinco minutos. A garganta arranhava. O nariz escorria. O corpo estava todo dolorido.
Um amigo tinha vindo sábado à noite para assistir um filme e passou gripe para ele.
Tinha deitado na cama e se coberto. Na cabeceira um copo de água, para amenizar a irritação da garganta. Não adiantava muito.
O celular tocou. Mensagem.
Lentamente ele pegou e desbloqueou o celular.
--Tudo certo pra hj a noite?--
Era Helen. Era pra ser o segundo encontro deles.
--Acho que não vai dar. Tô meio mal. Gripe--
--Putz. Que droga--
--Pois eh--
Os três pontinhos dela ficaram se movimentando por alguns segundos.
--Eu tô indo ai--
Ele escreveu que ela não precisava.
--Daqui a pouco eu tô aí--
Ele se rendeu.
---Tomou alguma coisa?--
--Nao.---
Ele pensou melhor.
--Vinho conta?---
Embaixo ele colocou um kkkkkkk.
--Seu bobo--
Ele esperou ela completar.
--Jaja eu chego
Bjs--
Ele colocou o celular sobre a cômoda novamente.
Agora teria que sair da cama para atender a porta.


Cinco

Ele pegou o dinheiro que Helen havia lhe dado pela televisão e desceu as escadas em direção ao apartamento da síndica.
Bateu na porta.
A senhora abriu a porta e o olhou com cara de poucos amigos.
- Bom dia, dona Teresa. Como vai a senhora?
Ela levantou as sobrancelhas um pouco.
- Hummm.
- Bom, bom, ele disse.
Entregou o dinheiro a ela.
- Aqui. O dinheiro do restante do aluguel.
Ela pegou. Contou. Colocou na prateleira próxima a porta.
- E o desse mês?
- Então, tô providenciando.
- Hummm.
Ficaram em silêncio durante um tempo. Ele desviou o olhar.
- Então... Eu já vou indo, deixar você com os seus afazeres.
Ele ia saindo. A velha ficou olhando ele.
Então ele parou. Deu meia volta.
- A senhora não.... Hã... Sabe de alguém que está precisando pra trabalhar não? Qualquer coisa.
Ela ficou pensando.
- Trabalha bem?
- Opa, claro.
Ela olhou para o teto, como se procurasse alguma coisa.
- Eu estou precisando de alguém para limpar os corredor. A mulher que limpava foi visitar a mãe doente no norte e só vai voltar daqui a duas semanas. E precisa pintar o corredor do térreo também.
- Claro, claro, faço sim. Eu mesmo que pintei o apartamento quando eu entrei. Pode ficar tranquila.
Ela ficou encarando Augusto.
- Hummm... Eu pago 80 pra mulher. Tá bom pra você?
- Tá ótimo, dona Teresa.
- E 80 também pela pintura.
Só 80 pela pintura?, pensou. Mas não podia recusar.
- Sim, sim, pode comprar a tinta.
Ela olhou para o teto novamente.
- Então tá. Hoje eu compro a tinta. Quando chegar eu te aviso.
Augusto saiu dali contente pra caralho por dentro. Mas não deixou transparecer. Era um profissional.

Nenhum comentário:

Postar um comentário