Um
Marcelo acordou no meio da madrugada.
Sentou-se na beirada da cama. Uma dor de cabeça começava a querer aparecer.
Comprimiu os olhos e isso não ajudou. Coçou os cabelos bagunçados. Levantou-se.
Pôs os chinelos e começou a andar.
Ouviu um crack e parou.
Abaixou-se, ainda no escuro.
Tateou o chão e achou os óculos partido
em dois. Passou a mão e percebeu a lente direita trincada.
Como que você veio parar aqui?
Foi em direção ao banheiro. Acendeu a
luz. Deixou os óculos partido em cima da pia. Começou a mijar.
Deu descarga e parou em frente a pia,
apoiando o corpo sob os braços esticados. Arregalou os olhos, mas logo deixou
que voltassem à posição sonolenta. Pressionou o rosto com as pontas dos dedos.
As olheiras estavam fundas. A barba por fazer. Dois pelos nasceram na ponta do
nariz.
Caralho, viu...
Lavou as mãos. Secou-as. Pegou as duas
partes. Antes de apagar a luz e sair do banheiro olhou fixamente o espelho por
um instante.
Dois
Abriu a geladeira. Pegou uma cerveja.
Pôs-se a procurar nas gavetas e armários alguma coisa que pudesse colar as duas
partes dos óculos. Com sorte acharia um rolo de durex, sem sorte encontraria
apenas fita isolante. Isso se encontrasse alguma coisa de fato.
Achou um rolo de fita crepe que tinha
perdido a cola há muito tempo.
Sentou-se à mesa e começou o trabalho
de colagem. Teve que dar muitas voltas até que conseguisse juntar as duas partes.
Colocou os óculos no rosto. Percebeu que aquela bolota em cima do nariz iria
incomodá-lo e até machucá-lo. A lente trincada também não seria agradável. Mas
teria que se acostumar.
Olhou para o relógio na parede
descascada do seu apartamento. 10 pras 5.
Pra que voltar pra cama, não é mesmo?
Três
Pôs pó de café no coador, água na
cafeteira, mas resolveu dar uma volta.
Colocou uma jaqueta velha sobre a
camiseta e calçou o par de tênis. Não trocou a calça de moletom.
Andou até a praça próxima ao se
apartamento. Sentou-se num dos bancos. Fechou os olhos.
O celular tocou. Era Lívia.
Alô?
E aí garotão? O quê ta fazendo?
O que eu to fazendo? O que você ta
fazendo me ligando às 5 da manhã?
Ah, para de ser chato, meu.
Você tá bêbada?
Não.
...
Tá, tô bebáça sim! Há há há há!
Ai, ai, Lívia...
O quê? Vai me dizer que você não bebeu
nada hoje?
...
Bom, são cinco da manhã, então... Não.
Ok, ok, senhor certinho.
Vamo tomar um café agora?
...
Tá, vamos.
Beleza, onde cê ta?
Tô aqui na frente de casa. Mas não to
achando a chave.
Ok, já to indo aí.
Quatro
Lívia morava à três quarteirões da
praça onde Marcelo estava. Enquanto andava, o sol começava a querer aparecer.
Foi pela avenida e passou por uma
farmácia e uma lanchonete 24hrs. O cheiro dos hambúrgueres da lanchonete o fez
sentir o vazio de seu estômago.
Continuou andando.
O celular apitou, avisando que havia
recebido uma nova mensagem. Marcelo tirou-o do bolso, desbloqueou e viu a
mensagem de Lívia. Dois emoticons de cocôs sorrindo.
Idiota.
Colocou o celular de volta no bolso.
Cinco
Lívia estava sentada na calçada, em
frente à sua casa, com a bolsa jogada de um lado. Marcelo atravessou a rua,
parou e encostou no poste, com os braços cruzados.
E aí?
Pô, que demora do caralho, viu.
Ele riu.
Eu acho que eu perdi a minha chave.
Deve estar aí na bolsa.
É, deve estar. Mas tem tanta coisa aí
dentro que eu não achei.
Ele deu a mão para ajudá-la a se
levantar.
Ela ficou de pé. Sentiu uma leve
tontura. Apoiou-se em Marcelo. Começou a rir.
Você precisava tá lá, Marcelo. Tava bom
demais.
Pois é, tô vendo.
Ajeitou a saia. Ele pegou a bolsa do
chão.
Você não tem a cópia da chave que eu te
dei?
Ela olhou para os lados. Ninguém na
rua. O céu já estava azulado escuro. Voltou-se para ele, que a olhava
fixamente.
Que foi?
Nada.
Só que você não me deu chave nenhuma.
Quê? É lógico que eu te dei.
Ele não se conteve e começou a rir.
Seu idiota. Abre logo isso aí.
Seis
Eles entraram. Ela entrou na sala e
deitou-se no sofá. A casa estava uma bagunça.
Marcelo entrou na cozinha. O bule
estava cheio de café frio. Colocou-o no fogão e acendeu a boca.
Você tem alguma coisa pra dor de
cabeça?
Vê se tem aí no armarinho do canto.
Sua dor de cabeça tinha piorado.
Ele achou uma maleta branca cheia de
remédios. A maioria das cartelas com apenas uma ou duas pílulas. Achou uma de
aspirina.
Me traz dois pra mim também.
Tinha quatro na cartela.
Destacou todos.
Encheu um copo de água, bebeu metade
com dois comprimidos e levou o resto para Lívia.
Aqui.
Valeu.
Ela sentou-se lentamente e desajeitada.
Pegou o copo e os remédios.
Depois de tomá-los devolveu o copo a
Marcelo.
Ele sentou-se ao seu lado.
E aí?
E aí...
Ficaram em silêncio.
Ela se esparramou no sofá. Olhou para
ele.
O que fez de bom ontem?
Nada. Cheguei do trabalho, pedi uma
pizza, assisti o jogo, fui dormir...
Humm.
Ela colocou a cabeça na guarda do sofá
e as pernas no colo de Marcelo.
Tirou o salto com os pés.
Nada folgada você, né?
Naa.
Ele colocou as mãos sobre as pernas
dela. Ainda segurava o copo.
E esse óculos aí? Tomou um sacode por
aí?
Ah, eu acabei pisando nele sem querer.
Ela riu.
Tonto.
Ele fez o mesmo.
Faz uma massagem. Daquele jeito que
você sabe fazer.
Depois.
Ela fez biquinho.
Ele sorriu. Enquanto ia colocar o copo
na mesinha de centro para começar a massagem, Marcelo ouviu o café fervendo
derramar.
Ai, merda. Esqueci do café!
Levantou-se e foi correndo apagar o
fogo.
Pegou duas xícaras, colocou açúcar e
derramou café fervido nelas.
Ô. Quer?
Disse erguendo uma das xícaras um
pouco.
Deixa aí na mesinha.
Ela estava mexendo em sua bolsa.
Marcelo ficou de pé, a observando.
Depois de um tempo ela tirou a chave lá
de dentro.
Olha aqui! Tava dentro do bolsinho.
Ele apenas levantou as sobrancelhas.
Você vai ficar bem por um minuto?
Eu não sou criança.
Então tá. Eu vou na padaria comprar pão
pra gente tomar café.
Ela fez que sim com a cabeça e ele
saiu. Ela ficou vendo ele sair enquanto segurava a xícara de café fervido com
as duas mãos.
Sete
Marcelo atravessou o portão da casa de
Lívia. Tirou um cigarro do bolso da jaqueta e acendeu. Soltou a fumaça e
começou a andar. Uma mulher de terninho colado no corpo passou por ele. Ele
virou a cabeça para dar uma olhada. Ao voltar para frente uma senhora que
estava colocando o lixo pra fora o olhou com desaprovação.
Ao passar por ela ouviu-a dizer.
Você devia se envergonhar. Você e
aquela sua namorada.
Ele parou, virou-se e olhou a senhora
fixamente. Apenas suspirou e continuou a andar. Tirou o cigarro da boca e mesmo
faltando mais da metade para queimar jogou-o no quintal dela.
Ouviu-a xingando baixinho enquanto
virava a esquina.
Atravessou a avenida e entrou na
padaria. Sentou-se no banquinho.
Na televisão suspensa o jornal da manhã
passava os gols da semana. Ficou assistindo por um momento até que um dos
atendentes aproximou-se.
Bom dia. O que vai querer?
Hã... Tem pão fresco?
Tem sim chefia. Acabou de sair.
Tá, então me vê meia dúzia.
O que mais?
Vê uma cerveja também.
Cerveja?
É... cerveja, vem em lata, garrafa, eu
quero uma lata, se não for incômodo.
O homem olhou feio para Marcelo.
Mas é que... são seis da manhã.
E?
E eu acho que você não devia...
Marcelo suspirou. Não acreditava que
estava levando sermão do cara da padaria.
Olha aqui, você vai ali no freezer,
pega uma latinha de cerveja pra mim e depois vai lá e pega meia dúzia de pão, ok?
Se eu quiser tomar uma cerveja às seis da manhã ou às três da tarde num sábado,
o problema é meu. Pode ser?
Olha, eu não quero me meter na sua vida
nem nada, mas às vezes você vem aqui e toma cerveja de manhã, antes de ir pro
trabalho, acho que seria melhor...
Vou te cortar agora. Posso te fazer uma
pergunta?
O homem hesitou.
Hã... sim.
Qual o meu nome?
Hã...
É, não sabe né?
Não, acho que não.
Pois é. E você vem aqui me dar lição de
moral me dizer que eu estou abusando do álcool? Sério mesmo?
Ah... não, não, é que... mas você também
não sabe o meu.
Eu sei. É Jonas. Toda vez que você faz
merda aqui o seu patrão grita lá do outro lado: “Ô Jonas, vem aqui fazfavor”.
Talvez eu deva chamar ele agora.
Não, não, não, por favor, eu já vou
trazer a sua cerveja.
Valeu.
Marcelo virou-se para a tevê novamente,
balançando a cabeça. Agora estava passando os gols do jogo que ele assistiu na
noite passada.
Mas olha só quem está aqui. Se não é o
grande Marcelo!
O senhor deu dois tapinhas amigos nas
costas de Marcelo com a mão esquerda, enquanto a direita estava estendida.
Marcelo o cumprimentou.
Opa, tudo bom Irajá, como é que tá?
Tudo certo.
Irajá encostou-se no balcão.
E aí, viu o jogo ontem?
Pior que eu vi.
Caraio, esse seu time, hein?
Ah, mas não adianta, seu Irajá. É aquilo
que eu falo. Não tem meio de campo.
Pior que é. E aquele técnico? Tirar
aquele meia argentino aos 30 do 1º tempo. Pô, pelo menos deixa o cara terminar
o primeiro tempo.
É, mas vai falar isso pra ele. O cara é
maluco.
O atendente colocou a lata de cerveja
no balcão. Irajá olhou para a lata e ficou em silêncio, desviando o olhar.
E pro senhor?
Ah, 10 pãezinhos.
10 pãezinhos.
O atendente repetiu o pedido e saiu de
perto. Marcelo abriu a latinha.
Vai uma?
Não, não. deixa pra outra hora.
Eles ficaram em silêncio. Marcelo tomou
o primeiro gole e pôs a lata de volta no balcão.
Então, e aquele ataque, hein, Marcelo?
Nem me fale. São ruim pra cacete. E o
meio de campo não consegue fazer a bola chegar nos atacantes, aí perde, erra o
passe, dá de bandeja pro outro time e toma-lhe contra-ataque.
É, o gol saiu de contra-ataque.
Marcelo tomou outro gole.
Não adianta, Irajá, desse jeito não vai
subir não.
Pior que é mesmo.
O atendente trouxe os dois sacos de
pão. Colocou o do Marcelo no balcão e entregou nas mãos o do senhor Irajá,
junto com a comanda.
Só isso mesmo?
Só. Só isso. Brigado.
O atendente saiu. Outro cliente havia
chegado.
Bom, vô indo lá, Marcelo.
Os dois apertaram as mãos.
Falou.
O senhor foi em direção ao caixa. Havia
apenas uma pessoa na fila, então foi embora rapidamente. Marcelo ficou
observando-o enquanto tomava sua cerveja.
Ao terminá-la Marcelo amassou a lata e
jogou-a no lixo embaixo do balcão.
Levantou-se e chamou Jonas com a mão.
Mais alguma coisa?
Não, só isso mesmo.
Jonas entregou a comanda a ele. Marcelo
pegou o saco e andou em direção ao caixa.
Ao chegar sua vez, ele deu a comanda e
disse.
Me vê um caixa de fósforo também.
Qual?
Da mais barata mesmo.
O caixa entregou o fósforo.
Vai cigarro hoje também?
Não, ainda tem bastante. Tô tentando
parar.
Pô, aí você me quebra as pernas.
Disse o caixa dando uma risada.
Marcelo apenas sorriu.
Pagou e saiu da padaria.
Oito
Marcelo acendeu outro cigarro. Esse ele
não iria jogar no quintal de nenhuma senhora, por mais chata que fosse.
Parou na frente da banca de jornal do
quarteirão e ficou lendo as manchetes.
Vai levar um?
Naa. Deixa pra outro dia.
Esse sim estava com as pernas sendo
quebrada, pensou. Fez um aceno mais ou menos para o jornaleiro e continuou a
andar. Passou pelo ponto de ônibus e diminuiu o passo, para contemplar por
alguns segundos a mais as mulheres que estavam ali, para mais um incrível
sábado de trabalho.
Nove
Ao chegar na rua de Lívia, Marcelo já
estava na metade do segundo cigarro seguido.
Ele entrou e viu que ela tinha dormido
no sofá, toda torta.
Na cozinha, ele deixou o saco de pães
sobre a pia e resolveu fazer outro café. Pegou um novo coador, pôs duas
colheres de pó, encheu a jarra de água, colocou-a na cafeteira e ligou. Pegou
seu celular e colocou alguma música. Aleatório. Sabia que quando viesse uma
música que ele não quisesse escutar naquela hora iria mudar, mas gostava da
sensação de não saber qual seria a próxima música.
Pegou uma das toalhas menos suja e a
estendeu.
Dois copos, umas facas, duas
colherinhas, a tabuinha de descanso, o saco de pães, a margarina, o açúcar, o
pedaço de queijo que estava guardado numa tupperware sem tampa.
Sentou-se para esperar o café ficar
pronto.
Sentia que a dor de cabeça estava
voltando, então tentou não pensar nisso para não piorar.
Uma das músicas que ele tinha no
celular, mas que nunca escutava começou a tocar. Porém seus braços estavam
pesados, sonolentos. Ele deixou que ela continuasse.
Ficou ali sentado, olhando para o nada,
com os olhos querendo fechar. Quis fumar mais um cigarro. Lembrou-se de que
estava querendo parar. E além disso, Lívia não gostava que ele fumasse em casa.
Idiota.
Murmurou baixinho para si mesmo, dando
um risinho de deboche, ao pensar no atendente da padaria.
Espreguiçou-se.
Estava sonolento. A xícara de café que
tomara não fizera o efeito que ele esperava.
Abriu o saco e tirou um pão. Cortou-o
na metade. Pegou uma delas e passou margarina. Fez uma canoa e deu uma mordida.
Até que não estava ruim.
A cafeteira começou a roncar.
Estalou.
Todo o café estava passado.
Levantou-se e trouxe a jarra para a
mesa.
Colocou metade em cada copo, açúcar e
mexeu com a colherinha.
Pegou os dois e foi em direção à sala.
Dez
Ei.
Marcelo cutucou Lívia com o joelho.
Ela gemeu.
Hã...?
Café.
Ela demorou um pouco a responder.
Mais café?
Ué, não quer?
Quero sim.
Disse tudo isso de olhos fechados.
Ele colocou o copo dela próximo ao seu
nariz.
Ela sorriu.
Lentamente sentou-se no sofá. Ele
estendeu o copo. Ela aceitou.
Ah, esqueci de te falar. Tem uma banda
foda que eu descobri.
Ah é? Qual?
Chama Dorothy.
Marcelo riu.
Tipo a menina do Mágico de Oz?
Ai, ai, sabia que você ia falar isso. É
meio rock, com blues e metal e lembra um pouquinho country às vezes.
Humm, vou dar uma olhada depois.
Lembra a música daquela série que a
gente assistiu... como é que chama? Wynonna alguma coisa.
Wynonna Earp?
Isso, essa mesmo.
Legal.
Lívia tomou um gole do café.
Esse está melhor que o meu. E também
não está fervido.
Não sei por que você ainda usa o bule.
Só por que eu que te dei a cafeteira?
Não, é que eu gosto do desafio.
Disse com uma risada.
Os dois tomaram um gole cada.
Vamos lá, eu trouxe pão. Tá fresquinho.
Já vou.
Marcelo levantou-se e foi sentar-se à
mesa.
Lívia entrou no banheiro. Deixou a
porta aberta.
Depois de mijar, ela lavou o rosto e
tirou a maquiagem já borrada naquele ponto. Saiu dali, entrou no quarto e
voltou à cozinha com uma camiseta e uma calça legging. Estava descalça.
Marcelo estava passando margarina na
outra metade do seu pão.
Uau!
O que foi?
Cadê aquela moça bonita de vestido que
estava aqui agora?
Cala a boca.
Marcelo sorriu e voltou-se para sua
metade.
Lívia pegou a caixa de leite da
geladeira. Estava quase vazia. Despejou no copo, mas não era o suficiente. Foi
até ao armário e pegou outra caixa. Abriu-a, completou o copo e o colocou no
microcondas. Um minuto.
Encostou-se à pia, de braços cruzados.
E a dor de cabeça, já passou?
Disse Marcelo, virando-se para ela.
Tá passando.
Humm...
E a sua?
Passou, agora ta voltando... sabe como
é que é.
O celular de Marcelo começou a tocar um
jazz de big band.
Pô, jazz não, né Marcelo.
Troca aí.
Ela pegou o celular. O microcondas
apitou.
Ela colocou uma do Aerosmith e devolveu
o celular na pia.
Aí sim.
Disse Marcelo enquanto pegava seu copo
de café, quase acabando.
Lívia pegou seu copo de café com leite
do microondas e sentou-se à mesa.
Ela tomou um gole. Fez uma careta e
pegou o pote de açúcar.
Colocou mais duas colheres.
Mexeu.
Não acha que tá exagerando?
Fica quieto. Eu não falo nada dos seus
cigarros.
Agora não, mas antes falava pra
caralho.
É, mas eu não falo mais.
Ela tomou um gole para experimentar.
Dessa vez não teve careta.
Ah, eu to tentando parar.
Humm.
O quê? Não acredita em mim?
Não, acredito, acredito sim.
Disse com sarcasmo.
Fumou quantos hoje?
Hã... só metade. Eu acendi um, fumei
metade e joguei fora.
Parabéns.
Valeu.
Ela pegou um pão, corto- e passou
margarina.
Me passa o queijo.
Marcelo passou o queijo.
Será que ainda tá bom?
Marcelo deu de ombros.
Lívia analisou por alguns segundos.
Ah, tá sim. É queijo. O que pode dar
errado?
Cortou três fatias e colocou-as no pão
aberto cheio de margarina.
Fechou e prensou o pão com a mão.
Por que você faz isso sempre?
Coitadinho do pão. O que ele te fez?
Lívia olhou para ele bem séria.
Marcelo, esse é o único jeito de
preparar um pão. É o que todo mundo devia fazer.
Os dois riram.
Marcelo fez outra canoa com a metade de
outro pão que ele cortou.
Os dois começaram a comer.
Onze
Depois de tomarem café, Marcelo lavou
os copos e talheres e desligou as músicas do celular. Foram para a sala e
ligaram a tevê.
Lívia ficava passando de um canal para
outro. Não conseguia colocar num e assistir.
Marcelo não ligava muito pra televisão,
então não falava nada sobre esse tique que ela tinha.
No fim ela deixou num canal que estava
passando uma reprise do Pica-Pau antigo, aquele maluco com o rabo verde.
Doze
Marcelo estava pescando ali sentado,
enquanto Lívia assistia o verdadeiro Pica-Pau na tela da televisão.
Ei, Marcelo?
Hã... Quê?
Disse sonolento.
Vai dormir na cama.
Não,
deixa. Aqui tá bom.
Não, vai lá.
Ele esfregou os olhos. A visão ficou ainda
mais embaçada.
Mas e você? Você não dormiu a noite
toda.
Vai lá, fica tranquilo.
Marcelo levantou-se com dificuldade e
foi até o quarto de Lívia meio que cambaleando.
Desabou nos lençóis cheirosos de Lívia.
Lívia desligou a televisão. Começava a
passar um desses desenhos novos que ela não suportava.
Foi até a cozinha e encheu a xícara de
café mais uma vez. Encostou-se na pia e bebeu todo o café de uma vez.
Olhou para o relógio na parede. Sete e
vinte.
Seus olhos ardiam de sono. Mas ela não
queria dormir. Se fizesse isso não conseguiria dormir à noite.
Pôs a xícara na pia, pegou seu celular
e foi ao quintal atrás da casa.
Mensagens. Várias sem importância.
Facebook. Nada que não estaria ali todos os outros dias e que ela não se
importava. Twitter. Algumas boas piadas, outras nem tanto, muita tempestade em
copo d’água. Instagram. Curtiu algumas fotos, muitas faltavam veracidade.
Cansou-se logo.
Não queria ouvir música.
Não queria ver vídeos no YouTube.
Não queria dormir.
Não queria sentir tédio.
Não queria o cotidiano depois de uma
noite toda acordada “se divertindo” aos olhos dos outros que a viam.
Treze
Entrou de volta em casa.
Foi até o seu quarto. Viu Marcelo
deitado esparramado em sua cama. Lembrou-se de quando eram namorados.
Só uma soneca de duas horinhas, ela
pensou.
Devagar ela sentou-se na beirada da
cama. Virou o rosto e viu Marcelo. Seu peito subindo e descendo. A barba por
fazer.
Gentilmente colocou seu braço sobre a
barriga. Ele nem se mexeu.
Deitou-se na beirada da cama, de
barriga pra cima. Depois virou-se e ficou olhando o perfil de Marcelo.
Quatorze
Uma hora depois a campainha tocou.
Lívia abriu os olhos, mas continuou
deitada. Marcelo continuou dormindo.
A campainha tocou mais uma vez.
Ela levantou-se e foi até a sala. A
campainha tocou mais uma vez.
Já vai!
Pela janela ela viu um homem com um
uniforme azul. Segurava uma prancheta e uma pequena caixa.
Ela abriu a porta.
Oi. Entrega.
Pô, cara, são... Sei lá, oito, nove
horas.
Ele não disse nada.
Lívia colocou a chave na fechadura.
É o meu livro?
Não sei.
Ele olhou na nota fiscal.
É, dois livros.
Ela abriu o portão.
Ele entregou a caixa a ela. Em seguida
pediu para assinar.
Lívia assinou.
Valeu.
Tenha um bom dia.
Você também.
Lívia fechou o portão. O homem de
uniforme azul entrou no caminhãozinho. Ligou-o e foi embora.
Ela abriu a caixa com a chave. Eram os
dois livros do Bukowski que ela havia pedido pela internet uma semana antes.
Pegou o que estava em cima de passou o dedo polegar pelas páginas.
Na verdade já havia lido os dois livros
emprestados de um amigo, mas queria ter em sua estante. Talvez nem fosse lê-los
algum dia.
A vizinha da casa ao lado passou com
sua filha de quatro anos.
Bom dia, tia Lívia.
Bom dia, amorzinho.
A mãe também deu bom dia.
Lívia entrou, pôs a caixa sobre a mesa
da cozinha e voltou a deitar-se ao lado de Marcelo.
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