quinta-feira, 5 de março de 2020

Constante 0008 | Uma história de--

Um

Marcelo acordou no meio da madrugada. Sentou-se na beirada da cama. Uma dor de cabeça começava a querer aparecer. Comprimiu os olhos e isso não ajudou. Coçou os cabelos bagunçados. Levantou-se.
Pôs os chinelos e começou a andar. Ouviu um crack e parou.
Merda!
Abaixou-se, ainda no escuro.
Tateou o chão e achou os óculos partido em dois. Passou a mão e percebeu a lente direita trincada.
Como que você veio parar aqui?
Foi em direção ao banheiro. Acendeu a luz. Deixou os óculos partido em cima da pia. Começou a mijar.
Deu descarga e parou em frente a pia, apoiando o corpo sob os braços esticados. Arregalou os olhos, mas logo deixou que voltassem à posição sonolenta. Pressionou o rosto com as pontas dos dedos. As olheiras estavam fundas. A barba por fazer. Dois pelos nasceram na ponta do nariz.
Caralho, viu...
Lavou as mãos. Secou-as. Pegou as duas partes. Antes de apagar a luz e sair do banheiro olhou fixamente o espelho por um instante.


Dois

Abriu a geladeira. Pegou uma cerveja. Pôs-se a procurar nas gavetas e armários alguma coisa que pudesse colar as duas partes dos óculos. Com sorte acharia um rolo de durex, sem sorte encontraria apenas fita isolante. Isso se encontrasse alguma coisa de fato.
Achou um rolo de fita crepe que tinha perdido a cola há muito tempo.
Sentou-se à mesa e começou o trabalho de colagem. Teve que dar muitas voltas até que conseguisse juntar as duas partes. Colocou os óculos no rosto. Percebeu que aquela bolota em cima do nariz iria incomodá-lo e até machucá-lo. A lente trincada também não seria agradável. Mas teria que se acostumar.
Olhou para o relógio na parede descascada do seu apartamento. 10 pras 5.
Pra que voltar pra cama, não é mesmo?


Três

Pôs pó de café no coador, água na cafeteira, mas resolveu dar uma volta.
Colocou uma jaqueta velha sobre a camiseta e calçou o par de tênis. Não trocou a calça de moletom.
Andou até a praça próxima ao se apartamento. Sentou-se num dos bancos. Fechou os olhos.
O celular tocou. Era Lívia.
Alô?
E aí garotão? O quê ta fazendo?
O que eu to fazendo? O que você ta fazendo me ligando às 5 da manhã?
Ah, para de ser chato, meu.
Você tá bêbada?
Não.
...
Tá, tô bebáça sim! Há há há há!
Ai, ai, Lívia...
O quê? Vai me dizer que você não bebeu nada hoje?
...
Bom, são cinco da manhã, então... Não.
Ok, ok, senhor certinho.
Vamo tomar um café agora?
...
Tá, vamos.
Beleza, onde cê ta?
Tô aqui na frente de casa. Mas não to achando a chave.
Ok, já to indo aí.


Quatro

Lívia morava à três quarteirões da praça onde Marcelo estava. Enquanto andava, o sol começava a querer aparecer.
Foi pela avenida e passou por uma farmácia e uma lanchonete 24hrs. O cheiro dos hambúrgueres da lanchonete o fez sentir o vazio de seu estômago.
Continuou andando.
O celular apitou, avisando que havia recebido uma nova mensagem. Marcelo tirou-o do bolso, desbloqueou e viu a mensagem de Lívia. Dois emoticons de cocôs sorrindo.
Idiota.
Colocou o celular de volta no bolso.


Cinco

Lívia estava sentada na calçada, em frente à sua casa, com a bolsa jogada de um lado. Marcelo atravessou a rua, parou e encostou no poste, com os braços cruzados.
E aí?
Pô, que demora do caralho, viu.
Ele riu.
Eu acho que eu perdi a minha chave.
Deve estar aí na bolsa.
É, deve estar. Mas tem tanta coisa aí dentro que eu não achei.
Ele deu a mão para ajudá-la a se levantar.
Ela ficou de pé. Sentiu uma leve tontura. Apoiou-se em Marcelo. Começou a rir.
Você precisava tá lá, Marcelo. Tava bom demais.
Pois é, tô vendo.
Ajeitou a saia. Ele pegou a bolsa do chão.
Você não tem a cópia da chave que eu te dei?
Ela olhou para os lados. Ninguém na rua. O céu já estava azulado escuro. Voltou-se para ele, que a olhava fixamente.
Que foi?
Nada. Só que você não me deu chave nenhuma.
Quê? É lógico que eu te dei.
Ele não se conteve e começou a rir.
Seu idiota. Abre logo isso aí.


Seis

Eles entraram. Ela entrou na sala e deitou-se no sofá. A casa estava uma bagunça.
Marcelo entrou na cozinha. O bule estava cheio de café frio. Colocou-o no fogão e acendeu a boca.
Você tem alguma coisa pra dor de cabeça?
Vê se tem aí no armarinho do canto.
Sua dor de cabeça tinha piorado.
Ele achou uma maleta branca cheia de remédios. A maioria das cartelas com apenas uma ou duas pílulas. Achou uma de aspirina.
Me traz dois pra mim também.
Tinha quatro na cartela.
Destacou todos.
Encheu um copo de água, bebeu metade com dois comprimidos e levou o resto para Lívia.
Aqui.
Valeu.
Ela sentou-se lentamente e desajeitada. Pegou o copo e os remédios.
Depois de tomá-los devolveu o copo a Marcelo.
Ele sentou-se ao seu lado.
E aí?
E aí...
Ficaram em silêncio.
Ela se esparramou no sofá. Olhou para ele.
O que fez de bom ontem?
Nada. Cheguei do trabalho, pedi uma pizza, assisti o jogo, fui dormir...
Humm.
Ela colocou a cabeça na guarda do sofá e as pernas no colo de Marcelo.
Tirou o salto com os pés.
Nada folgada você, né?
Naa.
Ele colocou as mãos sobre as pernas dela. Ainda segurava o copo.
E esse óculos aí? Tomou um sacode por aí?
Ah, eu acabei pisando nele sem querer.
Ela riu.
Tonto.
Ele fez o mesmo.
Faz uma massagem. Daquele jeito que você sabe fazer.
Depois.
Ela fez biquinho.
Ele sorriu. Enquanto ia colocar o copo na mesinha de centro para começar a massagem, Marcelo ouviu o café fervendo derramar.
Ai, merda. Esqueci do café!
Levantou-se e foi correndo apagar o fogo.
Pegou duas xícaras, colocou açúcar e derramou café fervido nelas.
Ô. Quer?
Disse erguendo uma das xícaras um pouco.
Deixa aí na mesinha.
Ela estava mexendo em sua bolsa. Marcelo ficou de pé, a observando.
Depois de um tempo ela tirou a chave lá de dentro.
Olha aqui! Tava dentro do bolsinho.
Ele apenas levantou as sobrancelhas.
Você vai ficar bem por um minuto?
Eu não sou criança.
Então tá. Eu vou na padaria comprar pão pra gente tomar café.
Ela fez que sim com a cabeça e ele saiu. Ela ficou vendo ele sair enquanto segurava a xícara de café fervido com as duas mãos.


Sete

Marcelo atravessou o portão da casa de Lívia. Tirou um cigarro do bolso da jaqueta e acendeu. Soltou a fumaça e começou a andar. Uma mulher de terninho colado no corpo passou por ele. Ele virou a cabeça para dar uma olhada. Ao voltar para frente uma senhora que estava colocando o lixo pra fora o olhou com desaprovação.
Ao passar por ela ouviu-a dizer.
Você devia se envergonhar. Você e aquela sua namorada.
Ele parou, virou-se e olhou a senhora fixamente. Apenas suspirou e continuou a andar. Tirou o cigarro da boca e mesmo faltando mais da metade para queimar jogou-o no quintal dela.
Ouviu-a xingando baixinho enquanto virava a esquina.
Atravessou a avenida e entrou na padaria. Sentou-se no banquinho.
Na televisão suspensa o jornal da manhã passava os gols da semana. Ficou assistindo por um momento até que um dos atendentes aproximou-se.
Bom dia. O que vai querer?
Hã... Tem pão fresco?
Tem sim chefia. Acabou de sair.
Tá, então me vê meia dúzia.
O que mais?
Vê uma cerveja também.
Cerveja?
É... cerveja, vem em lata, garrafa, eu quero uma lata, se não for incômodo.
O homem olhou feio para Marcelo.
Mas é que... são seis da manhã.
E?
E eu acho que você não devia...
Marcelo suspirou. Não acreditava que estava levando sermão do cara da padaria.
Olha aqui, você vai ali no freezer, pega uma latinha de cerveja pra mim e depois vai lá e pega meia dúzia de pão, ok? Se eu quiser tomar uma cerveja às seis da manhã ou às três da tarde num sábado, o problema é meu. Pode ser?
Olha, eu não quero me meter na sua vida nem nada, mas às vezes você vem aqui e toma cerveja de manhã, antes de ir pro trabalho, acho que seria melhor...
Vou te cortar agora. Posso te fazer uma pergunta?
O homem hesitou.
Hã... sim.
Qual o meu nome?
Hã...
É, não sabe né?
Não, acho que não.
Pois é. E você vem aqui me dar lição de moral me dizer que eu estou abusando do álcool? Sério mesmo?
Ah... não, não, é que... mas você também não sabe o meu.
Eu sei. É Jonas. Toda vez que você faz merda aqui o seu patrão grita lá do outro lado: “Ô Jonas, vem aqui fazfavor”. Talvez eu deva chamar ele agora.
Não, não, não, por favor, eu já vou trazer a sua cerveja.
Valeu.
Marcelo virou-se para a tevê novamente, balançando a cabeça. Agora estava passando os gols do jogo que ele assistiu na noite passada.
Mas olha só quem está aqui. Se não é o grande Marcelo!
O senhor deu dois tapinhas amigos nas costas de Marcelo com a mão esquerda, enquanto a direita estava estendida.
Marcelo o cumprimentou.
Opa, tudo bom Irajá, como é que tá?
Tudo certo.
Irajá encostou-se no balcão.
E aí, viu o jogo ontem?
Pior que eu vi.
Caraio, esse seu time, hein?
Ah, mas não adianta, seu Irajá. É aquilo que eu falo. Não tem meio de campo.
Pior que é. E aquele técnico? Tirar aquele meia argentino aos 30 do 1º tempo. Pô, pelo menos deixa o cara terminar o primeiro tempo.
É, mas vai falar isso pra ele. O cara é maluco.
O atendente colocou a lata de cerveja no balcão. Irajá olhou para a lata e ficou em silêncio, desviando o olhar.
E pro senhor?
Ah, 10 pãezinhos.
10 pãezinhos.
O atendente repetiu o pedido e saiu de perto. Marcelo abriu a latinha.
Vai uma?
Não, não. deixa pra outra hora.
Eles ficaram em silêncio. Marcelo tomou o primeiro gole e pôs a lata de volta no balcão.
Então, e aquele ataque, hein, Marcelo?
Nem me fale. São ruim pra cacete. E o meio de campo não consegue fazer a bola chegar nos atacantes, aí perde, erra o passe, dá de bandeja pro outro time e toma-lhe contra-ataque.
É, o gol saiu de contra-ataque.
Marcelo tomou outro gole.
Não adianta, Irajá, desse jeito não vai subir não.
Pior que é mesmo.
O atendente trouxe os dois sacos de pão. Colocou o do Marcelo no balcão e entregou nas mãos o do senhor Irajá, junto com a comanda.
Só isso mesmo?
Só. Só isso. Brigado.
O atendente saiu. Outro cliente havia chegado.
Bom, vô indo lá, Marcelo.
Os dois apertaram as mãos.
Falou.
O senhor foi em direção ao caixa. Havia apenas uma pessoa na fila, então foi embora rapidamente. Marcelo ficou observando-o enquanto tomava sua cerveja.
Ao terminá-la Marcelo amassou a lata e jogou-a no lixo embaixo do balcão.
Levantou-se e chamou Jonas com a mão.
Mais alguma coisa?
Não, só isso mesmo.
Jonas entregou a comanda a ele. Marcelo pegou o saco e andou em direção ao caixa.
Ao chegar sua vez, ele deu a comanda e disse.
Me vê um caixa de fósforo também.
Qual?
Da mais barata mesmo.
O caixa entregou o fósforo.
Vai cigarro hoje também?
Não, ainda tem bastante. Tô tentando parar.
Pô, aí você me quebra as pernas.
Disse o caixa dando uma risada.
Marcelo apenas sorriu.
Pagou e saiu da padaria.


Oito

Marcelo acendeu outro cigarro. Esse ele não iria jogar no quintal de nenhuma senhora, por mais chata que fosse.
Parou na frente da banca de jornal do quarteirão e ficou lendo as manchetes.
Vai levar um?
Naa. Deixa pra outro dia.
Esse sim estava com as pernas sendo quebrada, pensou. Fez um aceno mais ou menos para o jornaleiro e continuou a andar. Passou pelo ponto de ônibus e diminuiu o passo, para contemplar por alguns segundos a mais as mulheres que estavam ali, para mais um incrível sábado de trabalho.


Nove

Ao chegar na rua de Lívia, Marcelo já estava na metade do segundo cigarro seguido.
Ele entrou e viu que ela tinha dormido no sofá, toda torta.
Na cozinha, ele deixou o saco de pães sobre a pia e resolveu fazer outro café. Pegou um novo coador, pôs duas colheres de pó, encheu a jarra de água, colocou-a na cafeteira e ligou. Pegou seu celular e colocou alguma música. Aleatório. Sabia que quando viesse uma música que ele não quisesse escutar naquela hora iria mudar, mas gostava da sensação de não saber qual seria a próxima música.
Pegou uma das toalhas menos suja e a estendeu.
Dois copos, umas facas, duas colherinhas, a tabuinha de descanso, o saco de pães, a margarina, o açúcar, o pedaço de queijo que estava guardado numa tupperware sem tampa.
Sentou-se para esperar o café ficar pronto.
Sentia que a dor de cabeça estava voltando, então tentou não pensar nisso para não piorar.
Uma das músicas que ele tinha no celular, mas que nunca escutava começou a tocar. Porém seus braços estavam pesados, sonolentos. Ele deixou que ela continuasse.
Ficou ali sentado, olhando para o nada, com os olhos querendo fechar. Quis fumar mais um cigarro. Lembrou-se de que estava querendo parar. E além disso, Lívia não gostava que ele fumasse em casa.
Idiota.
Murmurou baixinho para si mesmo, dando um risinho de deboche, ao pensar no atendente da padaria.
Espreguiçou-se.
Estava sonolento. A xícara de café que tomara não fizera o efeito que ele esperava.
Abriu o saco e tirou um pão. Cortou-o na metade. Pegou uma delas e passou margarina. Fez uma canoa e deu uma mordida. Até que não estava ruim.
A cafeteira começou a roncar.
Estalou.
Todo o café estava passado.
Levantou-se e trouxe a jarra para a mesa.
Colocou metade em cada copo, açúcar e mexeu com a colherinha.
Pegou os dois e foi em direção à sala.


Dez

Ei.
Marcelo cutucou Lívia com o joelho.
Ela gemeu.
Hã...?
Café.
Ela demorou um pouco a responder.
Mais café?
Ué, não quer?
Quero sim.
Disse tudo isso de olhos fechados.
Ele colocou o copo dela próximo ao seu nariz.
Ela sorriu.
Lentamente sentou-se no sofá. Ele estendeu o copo. Ela aceitou.
Ah, esqueci de te falar. Tem uma banda foda que eu descobri.
Ah é? Qual?
Chama Dorothy.
Marcelo riu.
Tipo a menina do Mágico de Oz?
Ai, ai, sabia que você ia falar isso. É meio rock, com blues e metal e lembra um pouquinho country às vezes.
Humm, vou dar uma olhada depois.
Lembra a música daquela série que a gente assistiu... como é que chama? Wynonna alguma coisa.
Wynonna Earp?
Isso, essa mesmo.
Legal.
Lívia tomou um gole do café.
Esse está melhor que o meu. E também não está fervido.
Não sei por que você ainda usa o bule. Só por que eu que te dei a cafeteira?
Não, é que eu gosto do desafio.
Disse com uma risada.
Os dois tomaram um gole cada.
Vamos lá, eu trouxe pão. Tá fresquinho.
Já vou.
Marcelo levantou-se e foi sentar-se à mesa.
Lívia entrou no banheiro. Deixou a porta aberta.
Depois de mijar, ela lavou o rosto e tirou a maquiagem já borrada naquele ponto. Saiu dali, entrou no quarto e voltou à cozinha com uma camiseta e uma calça legging. Estava descalça.
Marcelo estava passando margarina na outra metade do seu pão.
Uau!
O que foi?
Cadê aquela moça bonita de vestido que estava aqui agora?
Cala a boca.
Marcelo sorriu e voltou-se para sua metade.
Lívia pegou a caixa de leite da geladeira. Estava quase vazia. Despejou no copo, mas não era o suficiente. Foi até ao armário e pegou outra caixa. Abriu-a, completou o copo e o colocou no microcondas. Um minuto.
Encostou-se à pia, de braços cruzados.
E a dor de cabeça, já passou?
Disse Marcelo, virando-se para ela.
Tá passando.
Humm...
E a sua?
Passou, agora ta voltando... sabe como é que é.
O celular de Marcelo começou a tocar um jazz de big band.
Pô, jazz não, né Marcelo.
Troca aí.
Ela pegou o celular. O microcondas apitou.
Ela colocou uma do Aerosmith e devolveu o celular na pia.
Aí sim.
Disse Marcelo enquanto pegava seu copo de café, quase acabando.
Lívia pegou seu copo de café com leite do microondas e sentou-se à mesa.
Ela tomou um gole. Fez uma careta e pegou o pote de açúcar.
Colocou mais duas colheres.
Mexeu.
Não acha que tá exagerando?
Fica quieto. Eu não falo nada dos seus cigarros.
Agora não, mas antes falava pra caralho.
É, mas eu não falo mais.
Ela tomou um gole para experimentar. Dessa vez não teve careta.
Ah, eu to tentando parar.
Humm.
O quê? Não acredita em mim?
Não, acredito, acredito sim.
Disse com sarcasmo.
Fumou quantos hoje?
Hã... só metade. Eu acendi um, fumei metade e joguei fora.
Parabéns.
Valeu.
Ela pegou um pão, corto- e passou margarina.
Me passa o queijo.
Marcelo passou o queijo.
Será que ainda tá bom?
Marcelo deu de ombros.
Lívia analisou por alguns segundos.
Ah, tá sim. É queijo. O que pode dar errado?
Cortou três fatias e colocou-as no pão aberto cheio de margarina.
Fechou e prensou o pão com a mão.
Por que você faz isso sempre? Coitadinho do pão. O que ele te fez?
Lívia olhou para ele bem séria.
Marcelo, esse é o único jeito de preparar um pão. É o que todo mundo devia fazer.
Os dois riram.
Marcelo fez outra canoa com a metade de outro pão que ele cortou.
Os dois começaram a comer.


Onze

Depois de tomarem café, Marcelo lavou os copos e talheres e desligou as músicas do celular. Foram para a sala e ligaram a tevê.
Lívia ficava passando de um canal para outro. Não conseguia colocar num e assistir.
Marcelo não ligava muito pra televisão, então não falava nada sobre esse tique que ela tinha.
No fim ela deixou num canal que estava passando uma reprise do Pica-Pau antigo, aquele maluco com o rabo verde.


Doze

Marcelo estava pescando ali sentado, enquanto Lívia assistia o verdadeiro Pica-Pau na tela da televisão.
Ei, Marcelo?
Hã... Quê?
Disse sonolento.
Vai dormir na cama.
Não, deixa. Aqui tá bom.
Não, vai lá.
Ele esfregou os olhos. A visão ficou ainda mais embaçada.
Mas e você? Você não dormiu a noite toda.
Vai lá, fica tranquilo.
Marcelo levantou-se com dificuldade e foi até o quarto de Lívia meio que cambaleando.  Desabou nos lençóis cheirosos de Lívia.
Lívia desligou a televisão. Começava a passar um desses desenhos novos que ela não suportava.
Foi até a cozinha e encheu a xícara de café mais uma vez. Encostou-se na pia e bebeu todo o café de uma vez.
Olhou para o relógio na parede. Sete e vinte.
Seus olhos ardiam de sono. Mas ela não queria dormir. Se fizesse isso não conseguiria dormir à noite.
Pôs a xícara na pia, pegou seu celular e foi ao quintal atrás da casa.
Mensagens. Várias sem importância. Facebook. Nada que não estaria ali todos os outros dias e que ela não se importava. Twitter. Algumas boas piadas, outras nem tanto, muita tempestade em copo d’água. Instagram. Curtiu algumas fotos, muitas faltavam veracidade. Cansou-se logo.
Não queria ouvir música.
Não queria ver vídeos no YouTube.
Não queria dormir.
Não queria sentir tédio.
Não queria o cotidiano depois de uma noite toda acordada “se divertindo” aos olhos dos outros que a viam.


Treze

Entrou de volta em casa.
Foi até o seu quarto. Viu Marcelo deitado esparramado em sua cama. Lembrou-se de quando eram namorados.
Só uma soneca de duas horinhas, ela pensou.
Devagar ela sentou-se na beirada da cama. Virou o rosto e viu Marcelo. Seu peito subindo e descendo. A barba por fazer.
Gentilmente colocou seu braço sobre a barriga. Ele nem se mexeu.
Deitou-se na beirada da cama, de barriga pra cima. Depois virou-se e ficou olhando o perfil de Marcelo.


Quatorze

Uma hora depois a campainha tocou.
Lívia abriu os olhos, mas continuou deitada. Marcelo continuou dormindo.
A campainha tocou mais uma vez.
Ela levantou-se e foi até a sala. A campainha tocou mais uma vez.
Já vai!
Pela janela ela viu um homem com um uniforme azul. Segurava uma prancheta e uma pequena caixa.
Ela abriu a porta.
Oi. Entrega.
Pô, cara, são... Sei lá, oito, nove horas.
Ele não disse nada.
Lívia colocou a chave na fechadura.
É o meu livro?
Não sei.
Ele olhou na nota fiscal.
É, dois livros.
Ela abriu o portão.
Ele entregou a caixa a ela. Em seguida pediu para assinar.
Lívia assinou.
Valeu.
Tenha um bom dia.
Você também.
Lívia fechou o portão. O homem de uniforme azul entrou no caminhãozinho. Ligou-o e foi embora.
Ela abriu a caixa com a chave. Eram os dois livros do Bukowski que ela havia pedido pela internet uma semana antes. Pegou o que estava em cima de passou o dedo polegar pelas páginas.
Na verdade já havia lido os dois livros emprestados de um amigo, mas queria ter em sua estante. Talvez nem fosse lê-los algum dia.
A vizinha da casa ao lado passou com sua filha de quatro anos.
Bom dia, tia Lívia.
Bom dia, amorzinho.
A mãe também deu bom dia.
Lívia entrou, pôs a caixa sobre a mesa da cozinha e voltou a deitar-se ao lado de Marcelo.

Nenhum comentário:

Postar um comentário