1
Esquecimento
Ana não sabia se sentia raiva ou decepção. Américo furou de novo.
Sempre fazia isso. Ou não aparecia ou chegava atrasado. Ela e Júlio estavam
saindo do cemitério. Vieram prestar homenagem ao quarto integrante do
grupo. Faziam isso todo ano. Era para Américo estar ali também.
- Nossa, é tão triste... Como que é possível, né?
- Bom, todos nós vamos morrer um dia, então... – ela disse a
Júlio.
- Como é que é? Sério? Como assim todo mundo vai morrer?
- Você tá de brincadeira, né?
Ele a olhou seriamente.
- Sobre as pessoas...
- Morrerem? – ele parou. Sorriu – Mas é claro!
- Rá! Rá! Rá! Só você mesmo...
- Só você mesmo digo eu, pra cair numa dessas.
- Bobo.
Eles continuaram a andar em direção à saída.
- Sabe, eu prefiro esses cemitérios do que aqueles com umas
casinhas e tal...
- Por quê?
- Sei lá, eu me sinto meio esquisita. Parece uma cidade pra gente
morta... Sei lá, é estranho.
“Droga, como é que eu fui esquecer?”, pensou Américo enquanto
pegava do cabide o único blazer preto que ele tinha. Vestiu-o e percebeu que
não tinha vestido a camisa, ainda estava com a camiseta do AC/DC que estava
usando há dois dias.
- Merda!
Tirou o blazer e a camiseta e vestiu a camisa branca. Olhou para o
relógio em cima da cômoda. Era pra ele estar lá meia hora atrás. Essa hora os
dois já estariam quase saindo. Depois de se vestir, pegou a chave do carro.
Tirou o celular do bolso e enquanto saía do apartamento mandou uma mensagem
para Júlio dizendo que estava quase chegando.
Silêncio. Américo dirigia. Ana estava sentada no banco do
passageiro e Júlio atrás. Américo olhou para ela, que estava com o rosto virado
para fora. Ele voltou o olhar para a estrada.
- Então, como foi hoje?
Ana o olhou com a cara fechada, encarando.
- Desculpa Ana, é que...
- Nem começa, pelo amor de Deus! Todo ano a gente vem. É a única
coisa que eu ainda te peço. A única!
- Poxa, Ana, isso acontece... – Júlio tentou amenizar.
- Ah, para com isso, não defende ele não. Ano passado ele também
esqueceu.
Ela parou e mais uma vez o silêncio tomou conta.
- E nem pra entrar lá.
- Mas eles tinham já fechado.
Américo disse isso e não quis olhar nos olhos dela. Pelo canto viu
que ela o estava encarando novamente. Depois tornou a olhar pela janela. Júlio
tentou mais uma vez.
- Que tal a gente pedir uma pizza e esquecer isso tudo?
Quase metade da pizza não foi tocada. Ninguém estava no clima para
comida e conversa, mesmo sendo pizza. Ana e Júlio logo foram embora.
Júlio já estava apertando o botão do elevador quando Américo a
chamou.
- Ana?
- Hã? – ela se virou. A raiva já havia passado agora.
Américo aproximou-se dela.
- Olha, eu... Eu realmente queria ter ido. Queria mesmo.
Ela respirou fundo. O abraçou.
- Eu sei.
Ficaram em silêncio depois do abraço. Ela passou a mão em seu
peito.
- Ué, e a gravata?
- Pois é.
O elevador chegou e abriu as portas.
- Bom, tchau...
- Tchau, Ana.
Américo fechou a porta do apartamento e lentamente andou até o
sofá. Largou-se nele e olhou fixo o teto. O cheiro da pizza na mesinha de
centro ainda estava presente. Virou-se e viu que a garrafa de refrigerante
estava aberta. Ele esticou o braço e a fechou. Voltou a encarar o teto.
- Mas que merda!
2
Café Literário
Se você entrar no Café Literário, verá uma enorme parede de dois metros e meio de altura com uma estante embutida recheada de livros, dos mais diversos conteúdos. Ali só se vende café comum em caneca (não têm copos de plástico para viagem) por dois reais e chá mate por um (gelado ou quente, à sua escolha). Você pode pegar qualquer livro e passar o tempo que quiser em um dos puffs ou mesas, desde que compre um dos itens acima. Se quiser levar um dos livros, é só pagar um real, não importa qual seja o livro. Se quiser devolver, o próximo café ou chá é de graça.
Américo entrou no Café e pediu um chá gelado. Foi até a estante e pegou um livro qualquer. De crônicas. Assim poderia ler alguns dos textos sem se comprometer a ler o livro todo.
Sentou-se em uma das mesas e poucos minutos depois um dos funcionários trouxe seu chá. Na caneca havia um desenho de um buldogue andando de skate. Ele sorriu ao ver isso.
Fora Jéssica, sua namorada, que pediu para que ele a encontrasse ali naquela hora.
Ele leu uma, duas... Quando estava na metade da terceira crônica aleatória, Jéssica entrou no Café. Tinha uma expressão séria. Ele começou a ficar preocupado.
- Olha. Eu... Acho melhor eu ir logo... – Ela pegou a bolsa e saiu, sem olhar para trás.
- Claro, claro... – disse ele sem emoção, segundos enquanto ela desaparecia de sua vista, dobrando a esquina.
Ficou encarando o livro de crônicas sobre a mesa. A capa era rosa e o título e o nome do autor em branco, atrás a silhueta de uma cidade cheia de arranha-céus, como aquela em que ele vivia.
Levantou-se e ao fazer isso derrubou a caneca, derramando o resto do líquido sobre o livro.
- Ah, eu-- Desculpa-- Mas que merda.
Uma das funcionárias aproximou-se dele com um pano de prato. Colocou-o sobre o líquido, absorvendo-o.
- Eu, eu-- Pode deixar-- Eu pago o livro.
- Ei, tudo bem – ela colocou a mão sobre seu ombro.
Ele respirou fundo. Sentou-se novamente.
- Posso perguntar o que aconteceu? Quer que eu chame alguém? Parece tão pálido.
Ela pôs as costas da mão sobre a sua testa.
- Não parece quente.
- Não, eu tô bem. Eu só... – deu um sorriso amarelo. – Só a minha namorada que me deu um pé na bunda.
- Ah... Nossa, eu sinto muito.
Ela parou. Depois pegou o pano de prato e o livro ainda encharcado de chá.
- Posso fazer alguma coisa pra você?
- Não, não...
Ele tirou uma nota de cinco.
- Aqui, fica com o troco. Eu... Eu preciso tomar um pouco de ar.
Saiu do Café.
- Então, foi assim.
Ana ficou alguns segundos em silêncio. Os dois estavam na sala do apartamento de Américo, sentados no sofá. Na televisão passava um jornal qualquer.
- Nossa... Seca assim, desse jeito?
- Desse jeito.
- Olha, eu já levei pé na bunda até por telefone e não foi tão ruim assim.
- Pois é...
Ele se levantou.
- Quer alguma coisa?
- Não, tô bem.
Entrou na cozinha. Ana ficou sentada no sofá. Ele encheu um copo com água. Tomou um gole. Parou na porta da cozinha. Encostou-se no batente.
- Mas o pior foi ela ter escolhido justo aquele Café.
- É mesmo, lá é bem legal.
- Agora toda vez que eu entrar lá eu vou lembrar daquela filha da puta.
3
Copo pela metade
- Eu cansei de fugir.
Ana disse isso e olhou nos olhos de Américo. Parou. Desviou o olhar para o chão.
- Chega.
Ela respirou fundo.
- Tudo bem... Hã... O que você quer dizer com isso?
- Disso, eu sempre faço isso. Sempre que as coisas dão errado eu entro num avião e desapareço por duas semanas.
- É... Às vezes muito mais que duas semanas.
- Então, isso mesmo. Eu tenho quase trinta, nunca fiz nada direito na vida, tenho um monte de relacionamentos mal resolvidos, e tirando você e o Júlio, eu não tenho mais ninguém. Minha família não quer nem saber de mim... O que eu também não culpo eles, eu fiz por onde... Mas eu realmente tô cansada de tudo isso. Tô cansada de ficar recomeçando, sabe...
- Sei. Sei sim, Ana.
Eles pararam. Américo levantou-se e foi até a pia da cozinha. Encheu um copo d'água e entregou a Ana. Sentou-se novamente à mesa de jantar.
- Obrigada.
Ela tomou um gole.
- Sabe o que é pior?
Ele não respondeu. Olhou-a levantando as sobrancelhas.
- A minha vida inteira se resume àquela mala ali na sala - ela deu uma risada amarga. - Que patético.
- Ei, não fala assim.
- Mas é verdade. - Ela tomou outro gole de água. - Às vezes eu fico pensando: “E se eu tivesse ficado aquela vez”, “e se eu tivesse tentado um pouco mais.” “E se eu não tivesse desistido tão fácil...”
- Bom, isso não é saudável.
- É...
Ana ficou encarando o copo pela metade por alguns segundos. Olhou para o relógio pendurado sobre a porta que separa a cozinha da sala do apartamento. Já eram quase onze horas da noite.
- Nossa, olha que horas já são. Meu Deus. E eu aqui, te alugando.
- Não esquenta. Hã... Você quer tomar um banho, descansar...? Parece cansada. Tá com as olheiras fundas.
- Também, quase vinte horas balançando dentro de um ônibus...
- He, he... Bom, eu vou pegar uma toalha e estender o colchão no quartinho pra você, pode ser?
- Brigada, Américo. Que nem você não tem outro.
- Ainda bem - disse ele levantando-se e indo em direção ao mini corredor do apartamento.
4
Eu não iria no seu funeral
- Então, me diz uma coisa... Se eu morresse hoje, quantas pessoas você acha que viriam no funeral?
- Humm – ela parou e ficou pensativa. Não o olhou com cara de espanto por estar falando de uma coisa tão fúnebre como aquela. Mordeu o canto do lábio inferior. Colocou a xícara de café sobre o pires, que já tinha café derramado de quando ela o mexeu. – Vamos ver... Bom, os seus parentes aqui de São Paulo provavelmente viriam, certo?
- É... Acho que sim. Continua.
- Os parentes de Minas nem pensar.
- Nem pensar mesmo. Pagar passagem, cinco, seis horas de ônibus... Rá, rá...
- E tirando o Júlio, acho que ninguém mais ia ir não. 20 pessoas?
- Ué, e você não vai ir não?
- Não, eu não iria no seu funeral nem morta – disse pegando a xícara de café e tomando mais um gole.
- Rá, rá, só você mesmo, Ana...
Américo levantou-se. Colocou a sua mochila que estava no chão sobre a cadeira e disse a Ana:
- Toma conta da mochila? Eu vou no banheiro.
- Ok, pode ficar tranquilo.
Ela pegou a colherinha e mexeu o café mais um pouco. O açúcar sempre teimava em ficar no fundo. Tomou mais um golinho para ver se agora estava doce o suficiente. Olhou para trás e viu a atendente começando a fazer seu x-salada. Sobre a mesa ao lado da chapa, o x-bacon de Américo já estava pronto. O queijo derretia. Ela passou a língua sobre os dentes. Estava salivando.
A padaria estava um pouco vazia, apesar do horário de almoço. Não era uma das melhores do bairro, mas por algum motivo ela gostava dali e sempre acabava sendo a sua escolha.
Algumas pessoas entravam e iam direto para a fila do pão. Essa parte da padaria sim, sempre movimentada, mas ali, na área perto do balcão, com algumas mesas e cadeiras, onde ela e Américo estavam sentados não.
Na parede perto do caixa havia uma bandeira da Portuguesa.
Apesar de quase nunca assistir ou ler sobre futebol no jornal, ela procurava saber como estava a Lusa. A família de origem portuguesa, agora tinha poucos torcedores. Muito por conta da influência dos agregados da família, as novas gerações torciam para o Corinthians, Palmeiras ou São Paulo. E mesmo ela não se importando com futebol tanto assim, Ana achava isso triste.
Começou a ficar entediada. O que ocorria com frequência. Pegou a mochila de Américo e a abriu. Tinha uma garrafa d'água pela metade, um envelope com algumas contas, e alguns livros velhos. Nenhum a interessou.
Américo lia muito. Tinha um pequeno sebo próximo a Avenida Guilherme Cothing, de uma portinha de aço de 2 metros de largura. Na verdade o salãozinho era uma tripa de 2 e meio por 8. Herdara do avô o prédio e se antes era um bar movimentado, hoje era um sebo que ficava às moscas. Se precisasse pagar aluguel já teria falido anos atrás.
Mexeu mais a fundo na mochila e achou a carteira de Américo. Ele e essa mania de andar com a carteira dentro da mochila e não no bolso, que nem pessoas adultas. Sempre que ela falava alguma coisa sobre isso a ele, ele rebatia dizendo que as mulheres andam com as carteiras nas bolsas e ninguém fala nada. Ana dizia que então ela não era mulher.
Abriu a carteira. Tinha dois cartões de créditos, vários cartões de visitas dos lugares mais aleatórios possíveis, duas notas de vinte e duas moedas de um real. A atendente do pão a encarou ao vê-la mexendo na carteira alheia. Ana simplesmente voltou fazer o que estava fazendo.
Junto com os cartões de visitas tinha um cartão branco e vermelho. Tirou-o e viu a uma foto bem desfocada de Américo, seu nome, endereço e RG com os dizeres no topo: Biblioteca de São Paulo. Ela estava colocando o cartão de volta quando ouviu a sua voz.
- Eu pedi pra você cuidar da mochila, e não vasculhar ela.
Pegou a sua carteira, colocou-a no bolso e pôs a mochila de volta no chão.
- Vem cá, por que você tem um cartão da Biblioteca se você tem um sebo. Você não vive praticamente numa mini biblioteca?
- Sim, é que lá tem os lançamentos.
- Ah, e você não pode perdê-los de jeito nenhum!
- Idiota – disse sorrindo. – Ainda não chegou os lanches?
- Nah. Mas o seu já tá pronto ali – apontou para a mesa atrás dela. – Eu estou quase pulando o balcão pra ir pegar.
Ela voltou a olhar para o café.
- Nada de interessante na minha mochila?
- Ainda na mochila?
- Tá, eu paro.
- Não, nada. Você e esses livros chatos que ninguém conhece.
- Pois é, esse sou eu.
A atendente chegou com um prato em cada mão. Colocou-os na mesa e voltou para buscar as bisnagas de ketchup, mostarda e maionese.
- Vocês querem pimenta?
- Sim, por favor – Ana disse meio agressiva.
A mulher se assustou um pouco, achando aquilo meio estranho. Virou as costas e voltou com o vidro de pimenta.
- É que depois de ir pra Índia, não consigo comer nada sem pimenta.
A mulher abriu a boca e soltou um “Ah” silencioso. E sumiu de vista.
Ao olhar para Américo, viu-o com os dentes sarcásticos abertos.
- Para com isso.
Começaram a comer. Ana colocou apenas pimenta em seu x-salada, ao contrário de Américo, que nunca punha ketchup ou qualquer coisa nem em lanche, nem em pizza. Considerava o ato um sacrilégio.
- Vai, só um pouquinho pra você experimentar.
- Não. Não Ana, para com isso.
- Bobo. Não sabe o que tá perdendo.
Na metade dos lanches Ana parou de comer e olhou bem sério para ele.
- E... – hesitou.
Américo parou de comer.
- Humm?
- Ah, nada não – disse e deu mais uma mordida em seu x-salada.
Américo largou seu x-bacon sobre o guardanapo e olhou ao redor.
- Até que não tem tanta gente, né?
- É...
Ele tomou o último gole de seu café.
- E você, vai fazer o que hoje? – disse ele pondo a xícara de volta no pires.
- Ah, não sei não.
- Humm...
Pegou o x-bacon de novo para terminar a metade restante.
- E no meu... Você iria no meu funeral? – disse Ana abruptamente e o olhou bastante séria.
- Você quer que eu vá?
- É... Acho que sim.
- Então pode deixar que eu vou.
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