No dia de todo dia
eles fazem o nada costumeiro
- Levanta desse sofá, pelo amor do
caralho de--
- Opa! Aí não – disse Joca, o Leão, que
estava esparramado no sofá do meio. Ele tinha segurava o controle remoto da TV,
que usava toda vez que as propagandas começavam. Com a outra mão ele alisava
sua juba.
- Ah, falou o que ganha dinheiro matando
gente! Virou religioso agora?
Joca resolveu não comprar a briga.
Voltou a sua atenção para a televisão. Ela ficava irritava por qualquer coisa,
mas aquilo já estava passando dos limites. Seu irmão estava no outro sofá,
pernas cruzadas sobre a mesa de centro e o notebook no colo.
- Uma semana! Uma semana. Você levanta,
toma café da manhã, vai pro computador, almoça, volta pro computador... Todo
dia! Porra, vai ficar desse jeito até quando?
O irmão desviou os olhos de peixe morto
para ela.
- Você ia ficar mais feliz se eu
levantasse, saisse e ficasse o dia inteiro num café, longe dos seus olhos? Eu
não ia estar fazendo a mesma coisa? Hã?
- Ah, cala a boca! Você me dá nos
nervos! Puta que pariu!
- Eu é que pago as tuas contas, então
não me enche o saco.
- É, aplicando golpe na internet. Meus
parabéns!
- Ué, quer que eu volte a matar gente
com o Joca? Porque eu volto.
- Ah, não, aí você é que ia voltar a me
encher o saco – Joca não se conteve.
- Não, é que... – ela deixou sua voz
sumir e sentou-se no sofá, ao lado do irmão.
Ele voltou sua atenção à tela do
computador.
- Eu vou sair pra beber. Quer alguma
coisa?
- Não, não...
- Quer ir junto? Hein, Joca?
- Humm,
tá, deixa eu pegar o óculos a gente já vai.
Ele se levantou e foi para o seu
quarto. Voltou de lá com um dos seus óculos escuros gigantes.
Na rua, andando em direção ao bar mais
próximo, o qual eram fregueses fiéis, ela tentou quebrar o gelo.
- E então?
- O quê?
- Nada, só querendo jogar conversa
fora.
- Humm,
então tá. Deixa eu ver... Acho que eu vou parar com essa vida, sabe... De
mercenário. Parar de matar.
- Por quê?
- Ah, eu já tô num ponto em que eu
tenho dinheiro suficiente que se eu parar hoje eu não preciso mais trabalhar
pelo resto da vida--
- Ei, então por que você não paga
aluguel?
- Ah, para com isso. O teu irmão deixa
eu morar lá pelas mil e uma vezes que eu salvei a vida dele.
Ela fez uma careta, mas deixou passar.
- Então, o que você vai fazer da vida?
- Sei lá... Vou viver um dia de cada
vez. Que nem os alcoólatras.
Ela riu.
Entraram no bar. Pediram duas garrafas
e se sentaram numa das mesas no fundo.
- Mas e você?
- O que tem eu?
- Não tem nada que você queira fazer da
vida além de apurrinhar eu e o seu irmão?
- Ah, vou fazer o quê? A gente tá bem
e... É isso. A vida é isso mesmo. Ou sei lá, virar um maluco obcecado por
trabalho que só para pra viver depois dos 60 anos, se aposentam e aí voltam a
trabalhar por que não sabem o que fazer da vida além daquilo – ela parou um
pouco. Tomou um gole de cerveja e continuou. – Talvez eu volte a viajar. Desde
aquele mochilão pela Europa eu nunca mais saí da cidade.
- Ei, talvez eu te acompanhe.
- É, pode ser.
Os dois já tinham um histórico juntos
com várias separações e reconciliações. No momento estavam dando um tempo. Sem
rótulos. Sem nada pra fazer.
2
Os deuses estão mortos
- Mas diz aí, por que você estava tão irritada com o Carlos?
- Ah, Joca... Na verdade sei lá, viu.
Ele tomou um gole da sua cerveja. Sorriu.
- Você sabe que ele é assim. A vida dele é essa. Na verdade a vida de nós três é essa. Tirando as suas viagens pelo mundo e às vezes em que eu sou contratado para matar alguém, a nossa vida é esse ócio gigantesco.
Ela deixou que as palavras de Joca entrassem em seu cérebro. Era verdade. Ali estavam os dois numa terça-feira, às duas da tarde, bebendo cerveja. O bar estava vazio. Além deles só o dono do bar e uns dois bêbados depressivos que frequentavam o lugar praticamente todos os dias.
- É, acho que sim.
Ficaram em silêncio. As cervejas acabaram e Joca foi até o balcão pegar mais duas. Quando voltou ele viu Joana escrevendo num guardanapo.
- O quê está fazendo?
- Ah, nada não – disse despreocupada.
- Deixa eu ver.
- Acho que não.
- Para com isso. O quê é?
- Só um poema idiota.
- Não deve ser tão idiota quanto você pensa. Sabe por quê?
- Não sei não. Por quê?
- Por que você, como uma poeta, está intoxicada com a ideia de que as pessoas não vão entender o que você tem como projeto literário.
- Puxa... Não sabia que você era capaz de ser tanto articulado.
- Cala a boca – disse Joca rindo.
Joana parou de escrever. Levantou um pouquinho o guardanapo e o leu. O leão tentou ler contra a luz, mas não conseguiu. Ela então entregou o papel a ele.
- Tó.
Eles ainda estão aí em algum lugar quase inexistentes
Os deuses estão mortos
Estão porque ninguém mais os veneram
Ninguém mais acredita que os seus mitos são reais
Uma nova geração está aí e eles vão definhando todos os dias um pouco mais
Sentem-se enganados
Deixados para trás
Num asilo
Apenas uns poucos excêntricos ainda os procuram pelas histórias que categorizam apenas como fábulas que pessoas primitivas contavam para encontrarem um lugar ao sol
Eles choram
Foram esquecidos
Ninguém se importa.
- Uau! – disse arregalando os olhos. – Incrível como você conseguiu escrever tanto com tão pouco espaço.
- Idiota.
Os dois riram. Ela pegou sua nova garrafa de cerveja do meio da mesa e tirou a tampa com a beirada da camiseta.
Tomou um gole.
- O que achou?
Joca demorou a responder. Parecia estar relendo o poema.
- Puxa. Como é que eu nunca vi esse talento antes?
- É que eu não sou de mostrar o que eu escrevo para qualquer um.
- Então isso quer dizer que até hoje eu era um qualquer um?
- Pode-se dizer que sim. Há, há.
- Então tá bom.
Ele ia devolver o guardanapo a ela. Ela colocou a palma da mão sobre o papel.
- Pode ficar com ele.
Joca o guardou no bolso do blazer surrado. Joana deu mais uma golada e disse seriamente.
- Não me importo nem com os deuses nem com os meus poemas.
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